PRÁTICAS ABUSIVAS SURGIDAS EM RAZÃO DO COVID-19. COMO O CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR PODE SER UTILIZADO COMO INSTRUMENTO DE COMBATE?
A Organização Mundial de Saúde declarou em 11 de março de 2020, que o COVID-19 tornou-se uma pandemia, sendo instituído o estado de calamidade pública, por intermédio do Decreto Federal de nº 7.257/2010. Através do referido Decreto, autorizaram-se posicionamentos estatais que pudessem responder de maneira instantânea o avanço da doença, seja de forma preventiva ou de forma repressiva.
Como todos sabemos, as principais medidas adotadas na repressão do vírus foram o isolamento social, quarentena e práticas de higiene (uso de máscaras, lavar as mãos e higienização de produtos) o que levou à manutenção de prestação de serviços apenas considerados essenciais.
Por certo, as medidas adotadas desencadearam efeitos econômicos e sociais dos mais diversos; cabendo salientar as relações entre fornecedores de serviços de maneira geral e seus consumidores. Com o isolamento social e a proibição de aglomerações, o turismo nacional e internacional foi afetado (cancelamento de viagens), o que repercutiu diretamente nos contratos de transporte aéreo, bem como nos contratos de hospedagem.Além disso, muitos eventos sofreram cancelamento, decorrendo daí uma repercussão jurídica.
Neste sentido, tal artigo visa analisar o impacto das medidas utilizadas nesta pandemia, nos contratos entre consumidores e prestadores de serviços, afim de se observar o que dita o Código de Defesa do Consumidor.
ESTADO DE VULNERABILIDADE DO CONSUMIDOR. A IMPORTÂNCIA DO AMPARO LEGAL MEDIANTE OCOVID-19.
A vulnerabilidade é a situação em que os cidadãos ficam em completa desvantagem e a mercê das empresas fornecedoras de serviços, notadamente numa sociedade de relações dinâmicas, massificadas e super conectadas, o que acaba provocando a incapacidade no cidadão de refletir para decidir de maneira desenviesada.
Essa vulnerabilidade de que tratamos, por vezes não será fática, podendo advir de limitações técnicas sobre produtos e serviços, ou por limitação na área científica que envolve o produto ou serviço. Sem contar a vulnerabilidade na informação, que decorre de defeito no dever de informar e esclarecer ao consumidor aquilo que se fornece, para que o próprio possa de forma espontânea expressar seu consentimento.
Com esse objetivo, o art. 4º, I, do CDC deixa clara a intenção em dotar o consumidor, em todas as situações, da proteção por sua vulnerabilidade, considerando-a como um dos princípios da Política Nacional das Relações de Consumo.
Daí se percebe, que a proteção da vulnerabilidade é norma essencial e estrutural no sistema constitucional de tutela do consumidor, justamente porque advém do princípio da dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III). Por esse motivo, o estado intervém nas relações de consumo que são ou se tornam abusivas, com o intuito de proteger esse consumidor que se encontra em estado de desvantagem, através do CDC. O Codex garante esses direitos básicos, mantém o equilíbrio na relação contratual entabulada entre partes.
No que diz respeito ao COVID-19, se trata de uma álea excessiva. O que, dessa forma, se encaixaria em possibilidade de ser utilizada como motivo para resolução por onerosidade excessiva, previsto no art. 6º, V, do CDC. A sua não incidência feriria os princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva.
Na atual conjuntura, em que vivemos uma situação de excepcionalidade, como o da pandemia do Coronavírus (COVID-19), a proteção da dignidade humana do consumidor se demonstra ainda mais evidente. A exclusão/restrição do direito consumerista impediria ou prejudicaria essa classe vulnerável ao exercício de direitos fundamentais.
O fator “vulnerável” circunda as situações de abuso em face do novo Coronavírus. São várias as situações fatídicas que comprovam essa prática e é nesse sentido que se aterá o próximo tópico.
OBSERVÂNCIA DE POTENCIAIS PRÁTICAS ABUSIVAS NAS RELAÇÕES DE CONSUMO EM FACE DO COVID-19
Relação jurídica entre consumidor, empresas aéreas, hoteleiras e promotoras de eventos.
Com o objetivo de atender o risco de não contaminação com o COVID-19, muitas empresas se viram obrigadas a adiar ou cancelar a prestação de alguns serviços, como voos, eventos em geral e hospedagem. Mesmo causando inúmeros transtornos para o consumidor, as empresas devem se ater à normas de regência, privilegiando o interesse social pela saúde e segurança de todos, evitando assim a possibilidade de responsabilização decorrente de possíveis danos em meio à prestação de um serviço com risco.
Eis que se faz o seguinte questionamento: nesses casos de eventos, hospedagem e passagens aéreas canceladas ou adiadas, como poderia o consumidor proceder? Inicialmente, esse consumidor detém o direito à informação previsto no art. 6º, III, devendo ser informado de todas as eventualidades do contrato pactuado e assim dirimir eventuais transtornos, (deixando claro ser passível de violação, a falta da informação) obtendo pelo art. 35 o poder de escolher e acordar com o fornecedor o meio mais satisfatório para ele.
O consumidor está resguardado pelo art. 51, incisos II, IV e XV, que tratam sobre cláusulas abusivas. No inciso II, trata-se de cláusula abusiva que de alguma forma subtraia do consumidor a opção pelo reembolso da quantia paga. O inciso IV se estabelece obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou seja, incompatíveis com a boa-fé ou a equidade. E, por fim, já o inciso XV, trata de cláusulas que estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor.
Cabe ressaltar que essas empresas não podem cobrar multas ou taxas, pois se configurariam cláusulas ou práticas abusivas; a depender se a conduta faz parte ou não de termos e condições previstos em um contrato, mas independente da configuração, surge para as empresas um posicionamento contrário à norma.
Neste sentido, fica claro que, embora se atravessem tempos excepcionais, com a decretação de estado de calamidade pública, não há restrição ao exercício de proteção do consumidor em seu estado de vulnerabilidade, sendo vedada prática de atos abusivos. Acaso praticados, serão declarados nulos de maneira absoluta e ainda será possível o reconhecimento do dever de reparar eventual dano ao consumidor (CDC, art. 6°, VI).
Em situações de violação do direito, alguns canais extrajudiciais estão abertos, na tentativa de solução auto compositiva do conflito, como por exemplo, a plataforma governamental “Consumidor.Gov”. Não havendo êxito, o amplo acesso ao Judiciário é sempre uma porta aberta para a solução adjudicada ou mesmo consensuada do conflito.
Em contrapartida, não obstante o dever de proteção da vulnerabilidade do consumidor, acredita-se que é importante também ponderar as dificuldades que as empresas enfrentaram nesse período excepcional. Observa-se a necessidade de se equalizarem os interesses do consumidor e do fornecedor, com o mister de se chegar a um denominador comum, para que não haja maiores prejuízos para ambos, tendo em vista estarmos tratando do COVID-19.
Quando se fala em equilíbrio entre as partes, no art. 4º, III, exalta o princípio da boa-fé objetiva, demonstrando a importância da “harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo, (…) sempre com base na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores”.
Essa compatibilização dos interesses do consumidor e do fornecedor é importante, buscando-se um equilíbrio através de princípios. A boa-fé objetiva tem que valer para ambos, porém, não se podendo olvidar em esquecer que o consumidor é o mais vulnerável, com presunção absoluta, como já dito anteriormente.
Foi por essa razão que a Resolução da Agência Nacional de Aviação Civil (ANAC) n.° 400, trouxe, de forma geral, o sistema de cancelamento e reembolso daquelas passagens. Defendendo que em caso fortuito e força maior, não cabe multa em hipótese alguma, apenas devolução dos valores pagos.
Cumpre salientar, ainda, que objetivando sanar o litígio e visando o equilíbrio contratual, mais especificamente sobre passagens aéreas, o Governo Federal anunciou a Medida Provisória (MP) nº 925/20, que dispõe sobre medidas emergenciais para a aviação civil brasileira em razão da pandemia da COVID-19, no qual se tornou possível marcar nova data ou o reembolso das passagens aéreas, em até 12 meses.
Cabe destaque também para a MP n.º 948/20, que dispõe sobre “o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura em razão do estado de calamidade pública”, enfatizando o prazo de doze meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo n.º 6, de 2020 a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos cancelados.
Corroborando com tal entendimento, o CC no art. 740 dispõe sobre o direito a “rescindir o contrato de transporte antes de iniciada à viagem, sendo-lhe devida a restituição do valor da passagem, desde que feita à comunicação ao transportador em tempo de ser renegociada. ”
Enfim, o CDC disciplina acerca da vulnerabilidade do consumidor, que permanece nessa condição, independente de pandemia, no qual a flexibilização para equalizar consumidor e fornecedor pode ocorrer, em situações pontuais, como no caso acima acerca das passagens aéreas.
Ato contínuo, no caso de prestação de um serviço de forma integral ou parcial, impossibilitando a completude do que fora acordado, o fornecedor tem a possibilidade da excludente de responsabilidade, quando de acordo com o art. 14 do CDC, § 3°, II, for “a culpa exclusiva do consumidor ou de terceiros”.
Todos os instrumentos aqui exemplificados, traduzem essa pandemia não prevista legalmente, o que afasta uma possível responsabilização e não ocorrência de má prestação do serviço, demonstrando soluções na resolução de eventuais danos por falta de cumprimento, através de outras ferramentas previstas no CDC, como: reembolso, adiamento, ofertas, novas datas e se ajustando ao consumidor ou outras soluções acordadas.
Isso serve para ambos não ficarem em prejuízo, em um momento de total delicadeza e enfraquecimento social, não desprezando o princípio da vulnerabilidade, mas exaltando o equilíbrio entre as partes.
Por essa razão, a maior e melhor comemoração para o trigésimo aniversário do CDC é poder contribuir com a atenuação do infortúnio gerado pelo novo Coronavírus (COVID-19), sendo um instrumento capaz de minimizar, no seu âmbito de competência, as consequências inerentes a essa situação pandêmica que nos encontramos.
Este estudo, visou debater a incidência do novo Coronavírus no exercício do direito do consumidor, especialmente nas hipóteses de cláusulas e práticas abusivas. Obrigações consideradas iníquas, abusivas, que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, são incompatíveis com os princípios da função social do contrato e da boa-fé, desequilibrando o contrato consumerista.
Luma Cabral- Advogada Consumerista